Finisterra
Somos irmãos, Lucenne e José-Márcio. Nascemos em Campo Grande, terras encharcadas, aquelas terras que escancaram suas portas para as águas do rio Paraguai formando assim desenhos transparentes cobertos de tintas azuis das águas e verdes das matas : o Pantanal do Brasil. Viemos ao mundo através de pais que nos ensinaram que a alegria e a coragem é saúde para a vida toda. Eles são o nosso porto. Fomos criados rente ao chão, aprendendo a viver com coisas simples, vendo a beleza em coisas singelas.
Como foi a nossa infancia ? Que eu me lembre foi normal…
… em desordem alfabética e cronológica:
Papai fazia polvo cozido no fogão a lenha; brigávamos pelos camarões do risoto da mamãe; a galinha tinha vários corações mas só duas coxas; o bife de fígado acebolado; óleo de figado de bacalhau; papai sentava na cabeceira da mesa, mamãe à direita e eu ao lado dela, Helena em frente e Lucenne na outra cabeceira; no quarto dos velhos tinha uma rede; quando era necessário eu me escondia atrás do guarda-roupa (para não apanhar); papai dizia : « a água, dia sim dia não, sobe por gravidade e enche a caixa de água »; « o diabo que te carregue »; « Deus não castiga ninguém, a pessoa que busca seu próprio castigo »; « não puxo o saco de bode »; « Bugra (apelido da Lucenne), hás de vagar no purgatório feito morcego »; « Mira (era assim que papai chamava mamãe), o telefone do picareta »; « Esse ai vai morrer tão seco que nem urubu vai querer dar uma bicada no rabo dele »; papai dizia a coisa certa na hora errada; o pescoço de peru na casa da tia Auristina; « não arranque páginas deste caderno »; o banho no tanque do quintal da vovó era uma festa; exceto a sala de visitas e o quarto da vovó, todas as peças não tinham forro : via-se as telhas; a cozinha da casa dela tinha um fogão à lenha no centro da peça e a cor dos muros era verde escura; papai era viúvo e amigo do meu avô, minha mãe era a filha mais nova e não podia se casar para cuidar dos velhos. Papai perguntou : « Manuel, a tua filha Palmira…? ». « Vamos la em casa que minha filha vai tocar piano para você ». Papai comprou um anel de brilhante, casaram-se e fizeram-nos; vo Prazerinhas (o nome era Maria dos Prazeres) era casada com Manuel Lopes Martins e tiveram 11 filhos : Eliodoro, Raul, Isaura, Elisa (faleceu de pneumonia em Sao José dos Campos), Marciano, Eduardo, Silvério, Plácido, Maria dos Prazeres (Menina), Palmira (nossa mae) e Enedino (Penduradinho); vô Manuel Lopes tinha uma oficina mecânica : construía barcos e fazia manutenção de motores dos barcos que circulavam no Rio Paraguai; depois da sua morte deram o seu nome à um liceu profissional de Cáceres; papai nasceu em Portugal, Praia de Ancora em 1899. veio ao Rio de Janeiro com avô Silvino em 1913. Meu avô era mestre de obras na reforma do Museu da Quinta da Boa Vista; contava que gostava de ficar olhando o meteorito Bendengó, mas tinha medo das múmias egípcias; tomava banho pelado em Copacabana e comprou um terreno na zona sul. Vendeu o terreno e comprou passagem de volta para Portugal. Sobraram alguns trocados; voltou à Portugal em 1918 e cumpriu o serviço militar no Exercito Português, em Angola. Era cabo em um presidio; contava que estando de serviço, fez entrar um garrafão de vinho e embebedou toda a guarda. Levou um esporro; se mudou para o Brasil em 1926, e comprou um relógio Omega de algibeira; a mulher e o filho mais velho, Edmundo, vieram no ano seguinte; ele, papai gostava de nos contar as peripécias dele. Sempre muito sério; quando eu estava no primário a professora falando de militares, eu levantei o dedo e disse : « O meu pai serviu o exercito, chegou até cabo »; papai explicando o caminho para o motorista de táxi : « vamos na Antônio Maria Coelho, 60 metros depois da Pedro Celestino »; os cajus são sagrados; o doce de estrelas da vovó Prazerinhas; a fazenda Ressaca em Cáceres e a viagem até la; frango com farofa nas viagens de trem; o Clube Atlântico era perto, a piscina era de cimento e o papai nadava de lado; íamos na Rural Willys do seu Barbosa (ele era relojoeiro), eu e Lucenne íamos la atrás e a estrada era de terra; as cortinas feitas com tampas de Kolynos na casa da tia Isaura, a gente dizia que era cortina de puteiro; o doce de caju em caldas da tia Isaura; em um almoço na casa da tia, mamãe caiu de pernas para cima quando se sentou numa cadeira de lona, depois do almoço. O culpado era o bugrinho que tirei o pauzinho que prendia a lona mas não imaginava que a vitima seria ela. Não me lembro se apanhei; tia Isaura me prometeu doce de caju se eu juntasse tampas de tubo de pasta de dente para ela. Não deu tempo pois ela faleceu antes; Lucenne de castigo porque foi com a filha da tia Isaura passear de barco no rio Paraguai; o Ernani, filho do tio Enedino era prefeito; o medo do Ijó; o carro preto do vovô Manoel não saiu da garagem. Ficava em cima de cavaletes para não estragar os pneus; depois que ele morreu, a oficina ficou como sempre foi; vovó Prazerinhas levantou à noite com dor de estomago e tomou veneno para rato pensando que era remédio de estomago. Faleceu uns três dias depois (12 ou 13 de dezembro de 1967), três meses depois da tia Isaura. Eu fui de bicicleta avisar papai no trabalho; cheiro de saudade; o tempo só anda de ida; frango ao molho pardo; as rabanadas que o papai fazia; comprar picolé Kibon no bolicho do Icha; « o Icha é um ladrão »; tio Silvério, que não gostava de bolo, levava um cacho de bananas em festa de aniversario pois não gostava de bolo; tios Silvério e Manuel andavam de bicicleta e usavam uma presilha na calça para não encostar na corrente; pastel de domingo com carne moída; colar de pérolas do ovário das galinhas; a parreira de uvas verdes; os últimos ovos crus do mundo; ovo quente com café; a tia Menina era uma figura; na casa dela em Cáceres tinha um telefone à manivela; o tio Enedino que dizia que é o aniversariante que da presente pro padrinho; o apelido dele era « Penduradinho » : quando era pequeno, se pendurava nos braços da vovó para não apanhar; o cientista no quintal – tinha um laboratório de química e uma oficina de eletrônica; eu tinha um manual de válvulas do Instituto Monitor; tinha o subsolo da farmácia Drogasil onde eu ia ver os produtos químicos; os vendedores me chamavam de Zé Bombinha; o acidente com acido nítrico que explodiu na minha cara e deixou manchas amarelas de albumina por algum tempo; mamãe não estava em casa e Lucenne me levou de táxi no consultório do Doutor Vasconcelos; fiz curso de datilografia na Escola Olivetti e curso de eletrônica por correspondência no Instituto Universal Brasileiro; no final do curso de eletrônica eu montei um radio à válvulas; os ovos azuis; a gelatina colorida dos turcos; o sebo de carneiro em bastão; pacu assado recheado com farofa; relógios incertos; o fogão à lenha no galpão; a geladeira à querosene; alvorada da fanfarra do Colégio Dom Bosco de madrugada no dia 26 de agosto. Meu instrumento era caixa; la pelos 6 anos comecei à estudar piano. Queria aprender à tocar violino. Parei o piano e não aprendi violino; nossos cachorros : Baronesa, Lobo, Danger e Laika e Pablo; no quintal tinha um limoeiro, mangueira, bambuzal, parreira, mandioca, galinhas e um porco; a galinha da Lucenne se chamava Sete de Setembro; tive uma caganeira depois de comer uma caixa inteira de uvas pretas; passeio pela cidade no caminhão do Edmundo; levantar e tomar Martini de madrugada na cama dos velhos em dia de aniversario; tinha medo de « olho de fogo », Lucenne me sacaneava com isso; copinhos com riscos dourados; porre de vinho quando mamãe tinha viajado para São Paulo; o quarto com livros até o teto na casa do tio Eduardo – meu paraíso; tio Eduardo dizia da Lucenne pra mamãe : « Essa tua filha vai te dar muito trabalho. Olhe a mini saia que ela usa. »; livros de esoterismo; « papai é bruxo »; cesta de documentos em cima da cristaleira; o bufet de formica cor de rosa na copa; a geladeira com pinguim na maçaneta; ventilador e lanterna em cima mesa do casamento da Lucenne (caso falte luz); a campainha no alto da escada para chamar os três bugres : um toque para Helena, dois para Lucenne e três para mim; número do telefone 2741; a telefonista anunciando três horas de espera para telefonar para tia Zilda em São Paulo; tia Zilda e tio Eduardo, irmão da mamãe, moravam em São Paulo, na rua Diana 919; mamãe tocando « La Cumparsita » no piano; Henriqueta bêbada dançando; a garrafinha de Fimatosam com vinho para Henriqueta levar para casa e as freiras nem desconfiavam; « Ih, ficou forte, coloca água. Ih, esta fraco, bota mais vinho »; o cabelo da Henriqueta era uma coisa : uma instalação; usava perfume Lancaster vencido; a casa em que nascemos virou sex-shop; caquinhos da obra na escada; viagem de trem até Corumba, pernoite e avião DC-3 da Cruzeiro do Sul até Cáceres; viagem de trem para São Paulo com baldeação para litorina em Bauru; depois, fizeram uma estrada de terra e o ônibus da Viação Motta levava 24 horas para chegar até São Paulo; tomar guarana no Restaurante Bambu no domingo depois da missa na Igreja São José; o doutor Licurgo e a cadeira de dentista – a broca era tocada com pedal; o elevador pantográfico do prédio, de vez em quando funcionava, quando tinha luz; a Terezinha, secretaria do doutor Vasconcelos; o filho, doutor Fernando de Vasconcelos e o doutor Edgar Sperb eram os pediatras da cidade; remédio para garganta era Vick Vaporub em lenço em torno do pescoço e leite queimado com açúcar; atrasar o relógio da copa, sábado à noite para poder chegar mais tarde; brincadeiras no Clube Surian e no Circulo Militar; Lucenne sonambula fez xixi no chão da cozinha e dizia « Sapini da saída »; o Zé Ivan conseguia tocar a ponta do nariz com a língua; capilé de pêssego; o vizinho, (Nosso Presidente » falando dele mesmo no alto-falante da sede da Servistrada em dia de feira; a musica que tocava o tempo todo : « Brrrrr… Preciso me cuidar, Senão, Eu vou pra Ja-ca-re-paguá »; seu José mascando fumo de corda; Filhinha era uma vizinha solteirona que namorava o Carregal que era inspetor de casado; a vizinha dona Katira, sempre bêbada; papai matando galinha; peru tomava cachaça e ficava bêbado antes de ser morto; a marca do piano era Loreley; o acordeão vermelho laqueado da Lucenne, marca Todeschini; a vizinha que era apaixonada por Vanderlei Cardoso (acho que nunca se casou); o telefone toca, Lucenne atende, papai diz : « Se for o Bode (apelido), diga que não estou », Lucenne grita : « Pai, é pro senhor, é o Bode »; botei fogo na garagem. Mamãe veio ver e eu disse : « Mãe, não olhe para este lado… »; matar lagartixas no muro do colégio das freiras com estilingue; soltar pandorga (pipa) com cerol na linha; eu fazia eu mesmo minhas pandorgas e como linha usava um carretel de 200 metros de linha 24; assistia filme de Cantinflas, entre outros, no cinema Rialto; tinha três cinemas na cidade : Rialto, Santa-Helena e Alhambra; antes das matinés de domingo a garotada se reunia em frente do cinema para trocar Gibi; tomar banho de chuva; a cabana no quintal feita com restos de construção – tinha até luz; soltei uma bombinha na aula do Yazigi. A aula era na faculdade de direito. Pensaram que era um atentado. Me contaram que o Padre diretor da escola levantou a batina para descer a escada correndo. Fui expulso; papai dizendo : « Quer falar comigo, vem aqui »; antes de dormir : « A bença, pai. A bença, mãe »; papai servindo café na cama de manhã; quando a Helena estava brava : « boca de jiripoca »; canteiro de dálias e melancia amarela na frente da casa; papai correndo atrás da gente para dar injeção : « Eu estudei veterinária »; seringa de injeção com agulha torta que fervia no álcool; sopa de milho verde com cabelo; « Leite de camelo », receita inventada; a casa com garagem sem carro; « Forram-se botoes »; padrinho Vicente hipocondríaco que viajava com uma mala que só tinha remédios e uma lampada infravermelha, caso fosse necessário; o fedelho, filho do primo (não lembro o nome) fazendo pirraça para o pai : « Você tem chifre até no dente »; tio Zé Vilar, sonambulo, levantando um lado da cama pensando que era um muro caindo em cima da tia Isaura, que já tinha caído do outro lado : « Sai de baixo, Isaura. Não aguento mais segurar o muro. »; Nélson Dantas era filho da tia Isaura. Ele tinha uma frota de táxi aéreo. O irmão morreu em um acidente pilotando um avião teco-teco, bateu em um morro. Nélson trouxe os restos do irmão em um saco e teve um ataque cardíaco quando pousou; depois que ele morreu, deram o nome dele ao aeroporto de Cáceres; ele tinha um Galaxie, sempre chique, bem vestido, sempre com óculos Rayban; Gracinda era a esposa do Nélson, tinha pé pequeno de criança quase; tinham tres filhos : Regina, Nelsinho e Katia; numa feita, Gracinda mandou Nelsinho, tomar banho. Como estava demorando foi ver e o encontrou com um guarda-chuva lendo gibi embaixo do chuveiro; o João Bastos, irmão do tio Zé Vilar, era um vidro de perfume ambulante com gomalina no cabelo para esconder a velhice; o espelho com moldura vermelha na sala; o casarão da vovó Prazerinhas em Cáceres (saudades dela) e as frutas : caju, coco, bocaiuva (chiclete de pobre); jabuticaba, bocaiuva e guavira se vendia por litro, medido em uma lata de óleo; mamãe trapaceava no jogo de baralho e o papai sabia mas não ligava; jogávamos bingo e scopa; os tentos do jogo eram caroços de araticum; Dona Mercedes vendia as chipas paraguaias mais deliciosas da Terra; Flauzina era a enfermeira que aplicava injeção – no tempo livre ela vendia produtos da horta : alface, couves tristes e tomate; tinha o vendedor de biju que passava com a matraca; tinha também o vendedor de quebra-queixo ou de uma gelatina vermelha coberta com coco ralado, era bom mas do que era feita ficou sendo um mistério; íamos, de vez em quando, visitar o Tio Pedrinho e Tia Bianir – de noite, o papai levava um 38 no bolso, caso houvesse uma emboscada no caminho. Os homens ficavam conversando com o revolver no chão, caso fosse necessário. O fedelho aqui ficava ao lado fingindo que entendia de politica. Acho que eles também fingiam…; tio Pedrinho era alegre e engraçado : baixinho, cabelo ralo penteado pra trás e meio metro de nariz; nunca soube se papai era de direita ou esquerda, mas ele não gostava de ladroes; Tia Bianir era bem mais alta que Tio Pedrinho, mas para criança todo adulto é enorme; tinham dois filhos que estudavam agronomia em Minas Gerais; Tio Pedrinho nos levava de volta no fusca de cor azul calcinha. Eramos seis mas ainda cabia mais um elefante com unhas pintadas; usávamos o táxi do Higa, um Simca Chambord verde limão; o escritório onde minha irmã Lurdes trabalhava tinha um monte de maquinas de escrever, aquelas antigas maquinas pretas, e papel carbono; foi la que resolvi aprender datilografia; Lourdes faleceu no ano passado com 88 anos; quando papai chegou em Campo Grande, « matava-se gente como se mata cachorro na rua »; alias, « se jogar uma pedra em um cachorro, erra o cachorro e acerta nove advogados, cinco dentistas, quatro engenheiros e três médicos »; papai tinha um relógio Omega de algibeira; no Colégio Dom Bosco tinha missa toda quarta feira e reza todo dia antes da aula que começava às 7h10 da manha; eu era « coroinha » e ajudava na missa; papai mudou a minha data de nascimento para eu poder entrar no ginásio – não tinha idade; no final da aula da manhã, íamos ficar na frente do Colégio Auxiliadora esperar a saída das meninas; meu primeiro amor foi a Márcia, um amor platônico, eu deveria ter uns 11 ou 12 anos, mas a gente se gostava, ficava só no olhar; uma vez ficamos conversando num canto, ela estava bonita com um vestido de florezinhas pequenas e coloridas; depois eu era apaixonado pela Beth mas ela nunca me deu bola – a concorrência era rude e eu era tímido; uma tarde ela me ofereceu um « sunday » na lanchonete das Lojas Americanas – foi assim que me apaixonei por ela, mas para ela eu era apenas um amigo; aos domingos, na praça do centro da cidade, ao lado do relógio, tinha musica ao lado da fonte luminosa; a única rua asfaltada era a 14 de julho; no final dos anos 60 compramos uma televisão preto e branco – eu assistia desenhos de Tom & Jerry e Johnny Quest na única emissora, a TV Morena; tinha pesadelos quando assistia filmes da série « Os Invasores », com David Vincent, na televisão; no radio, aos sábados à tarde, escutávamos historias do tipo Chapeuzinho Vermelho, Branca de Neve ou Guliver; Lucenne e Helena gostavam do programa « Não diga Não »; as vezes papai se sentava na varanda para tomar uma cerveja, quente, em uma cadeira de tirinhas de plástico verde ou vermelha; no Colégio, fizemos uma excursão até o Sul : visitamos Curitiba, Porto Alegre, Canelas, Florianópolis. O responsável era o Padre Marinoni; o apelido do professor de Latim era « Ego ero » – não me lembro o nome dele; o professor de Química era o Padre Luiz Marconetti, o de Física era o Max (um tipico alemão que tinha uma caminhonete Ford 29 verde clara), o professor de matemática era o Benjamin, Arlinda Cantero de português, Toninho Dorsa de biologia, dona Francisca de francês e o conselheiro era o Padre Geraldo cujo apelido era Frangão pois ele tinha um pescoço comprido e vermelho; Padre Luiz me dava nota sem corrigir. Eu percebi quando eu errei em uma questão e ele colocou que estava certa; não gostava de dar cola. Em uma feita, o Zé Carlos tentava colar e eu escondia a prova com o braço. Ele entregou a prova em branco. Quando passou ao meu lado, descarregou a caneta tinteiro na minha prova; ao lado do colégio tinha uma torrefação de café que perfumava o ambiente no final da manhã; o primário eu fiz no Externato Americano, cuja diretora era a professora Júlia; o uniforme era um short azul vivo e uma camisa com motivo xadrez bem miúdo; a arvore de natal tinha algodão nos galhos e bolas vermelhas e azuis. Cada ano sobravam menos bolas; no Natal, papai fazia rabanada; quase todo dia no final da tarde eu levava uma garrafinha de Coca-Cola com leite para o papai, no trabalho; nos mudamos para o sobrado no dia 5 de dezembro de 1962, eu tinha 5 anos; ia com mamãe fazer compras de tecido nas Casas Pernambucanas – foi assim que aprendi que o tempo de espera é elástico; a Loja Cliper, do seu João, vendia tecidos de luxo pela « hora da morte »; o fedelho dançava quadrilha fantasiado de gaúcho com chapéu, bombacha, bota com esporas, guaiaca e revolver de plástico à espoleta; meu sobrinho mais velho casou na delegacia pois « fez mal pra moça » – eu tinha 8 anos. Não teve festa; mamãe explicava as piadas que contava, como se precisasse; quando eu viajava para Bela Vista com papai, íamos depois do jantar no bolicho do seu Nestor e dona Felícia conversar com amigos; na frente do balcão tinha sacos grandes de 60 quilos com arroz, feijão, macarrão, farinha e coisas desse tipo; papai comprou do seu Nestor outro relógio de algibeira, um Longines; Campo Grande era grande, tinha dois puteiros : Bonanza e Chacrinha, mas eu nunca fui; alguns presentes de aniversario : um « Engenheiro Eletrônico » da Philips, uma maquina de escrever Remington 21, um relógio cronometro comprado na loja Avelino dos Reis (Ivan tinha um igual, mas o mostrador do meu era preto e o dele branco), um microscópio, a coleção de livros « Tesouro da Juventude » em 18 volumes (tenho até hoje); mamãe lia a revista « Jornal das Moças » e papai lia « Folha de São Paulo » ou « Ultima Hora »; papai lia até dicionario; chinelo era psicologo familiar; encontramos cartas trocadas entre papai e mamãe quando eram namorados. Ela dizia para ele tomar Maracujina; mamãe ficou brava por termos fuçado nessas lembranças; o guarda roupa deles era uma « caverna de Ali Baba »; de vez em quando, na frente do colégio tinha um aglomerado de gente em torno de um vendedor de loções milagrosas. No meio tinha uma mala com uma cobra jiboia; eu tinha uma bicicleta Caloi Rubronegra vermelha e preta. Aprendi à andar no dia em que fiz minha Primeira Comunhão; a bicicleta tinha dínamo, farol e lampadinhas mas eu só saia de dia; papai caiu da bicicleta indo para o trabalho e teve que tirar água do joelho; no colégio Dom Bosco, o castigo era copiar dez vezes o Hino Nacional ou contar pastilhas (ladrilhos) do corredor : « comece aqui e vá até aquela porta »; perto de casa morava o General Amadeu, casado com dona Augusta. Ele gostava de conversar comigo e me chamava. Lucenne dizia que a esposa dele era a Vovó Donalda. Acho que não tiveram filhos; conversava também com o Coronel Arnaldo, pai da Lúcia e da Liane : ele tinha feito o curso de eletrônica no Instituto Monitor e eu no Instituto Universal Brasileiro. Ele me emprestou alguns livros de eletrônica; papai dizia : « Se apanhar na rua, apanha mais uma vez em casa para aprender »; no primário tinha o Asturio na mesma classe, um sobrinho mais velho do que eu. Um dia eu disse para ele me esperar na saída. Não esperou. ainda bem; tinha vontade de ter um autorama. nunca tive. não fez falta; tinha um carrinho de lata que funcionava com fricção, coisa da época, com o Pato Donald como condutor. Quando empurrava, Donald balançava a cabeça. Um dia deixei na varanda na frente da casa, desapareceu; gostava de brinquedos de construção com porcas e parafusos; um domingo, depois da missa, ganhei uma nota de dinheiro. Não me lembro se era uma de 5 cruzeiros do Barão do Rio Branco ou a de 1000 do Cabral. Papai abriu uma caderneta de poupança. O dinheiro ainda deve estar la; a minha primeira escritura, que eu me lembro, foi uma carta para minha avó Prazerinhas, em um papel de embrulho ou rascunho cinza e letras de imprensa; papai, português, tinha pouco sotaque, exceto quando ficava bravo. Ai então… ; às vezes ele cantarolava a única canção que conhecia : « E tu fostes ao senhor da serra e nem um anel me trouxestes. E nem o mouro da mourama fazia o que tu fizestes… » Procurei na Internet e encontrei uma velha portuguesa cantarolando…; gostava de piadas de português. Sempre as mesmas historias; « mando-lhe duas cartas, uma dentro da oitra, se não recebeires uma recebes a oitra »; « Juequim, ô Juequim ! Qual é mesmo a apelido que pusestes no .. da tua mãe ? »; portugueses não trocam o b pelo v, quem troca são os « vrasileiros »; para ele, as melhores piadas são piadas de português; papai emprestou « Os Lusíadas » de Camões ao Doutor Vasconcelos. Não devolveu. Livro não é objeto que se possa emprestar; « O que se leva desta vida é o que se come, o que se bebe e o que se fode. O resto é conversa fiada »; quando ele dizia coisas desse tipo, ele parava olhava com um rabo de olho e um sorriso de sacana esperando nossa reação; nossos pais tinham o costume de ficar um pouco no portão de case no fim da tarde. Coisas de cidade do interior. Tinha uma senhora que passava sempre e parava para conversar e contar vantagem. Nossos pais tinham um casal cachorros pequinês : Pink e Toy. Numa tarde os dois cachorros começaram a transar na frente da senhora. Papai olha e diz : « Ei vocês dois. Se quiserem trepar, vão la no fundo do quintal. Aqui não é lugar. O que a Dona Fulana vai pensar de vocês dois. ??? ». Dona Fulana foi-se embora e não voltou mais, para alegria de nossos pais; tio Enedino era o padrinho da Lucenne, mas o único presente que deu para ela foi um anel que ela engoliu enquanto brincava num balanço. Encontrou no dia seguinte mas não mais utilizou…; os padrinhos do Zé Márcio eram Alda e Vicente Tortorelli, não me lembro de ter ganho presente e não tive mais noticias deles; Helena ganhava presentes do tio Eduardo; criança só pensava em ganhar presentes…; fomos passar férias em Cáceres. Nos despedimos da vovó Prazerinhas na copa da casa dela. Ela disse : « Eu sei que é a ultima vez que nos vemos ». Ela já estava com 90 anos. Ela acertou !; anos depois nossa mãe, também com 90 anos foi passar alguns dias em Pindamonhangaba e disse à Lucenne : « Eu não vou voltar ». Ela estava certa !
Lucenne e Zé Márcio